sexta-feira, junho 18, 2004

 

Eu sou o palhaço


Acabo de receber do meu amigo Roberto Santiago um texto que faz a gente parar e refletir um bocado. Quantos de nós, professores, já não pensamos algo parecido?... Sim, qualquer profissional imagino que possa passar por um destes momentos de incerteza e falta de fé na sua profissão. Isso me parece ainda mais preocupante quando se trata da Educação. Moral e Ética estão na moda, são temas muito falados. Mas pouco praticados. Uma certa apatia, uma anomia inquietante faz valores como honestidade e solidariedade parecerem ridículos. O que ensinar? Como ensinar?
Por sua vez, os jovens se apegam a modelos de comportamento que não são os mais recomendáveis; vivem num mundo de imagem, superficial, onde o senso comum é "levar vantagem".
O último a sair não apague as luzes, mesmo porque não há luz nenhuma a ser apagada. Sem luz, sem fim do túnel, sem fundo do poço...


A LEI DE ZECA PAGODINHO
Nailor Marques *

Diz uma história que numa cidade apareceu um circo, e que entre seus
artistas havia um palhaço com o poder de divertir, sem medida, todas as
pessoas da platéia e o riso era tão bom, tão profundo e natural que se
tornou terapêutico. Todos os que padeciam de tristezas agudas ou
crônicas eram indicados pelo médico do lugar para que assistissem ao tal
artista que possuía o dom de eliminar angústias.
Um dia porém um morador desconhecido, tomado de profunda depressão,
procurou o doutor. O médico então, sem relutar, indicou o circo como o
lugar de cura de todos os males daquela natureza, de abrandamento de
todas as dores da alma, de iluminação de todos os cantos escuros do
nosso jeito perdido de ser. O homem nada disse, levantou-se, caminhou em
direção à porta e quando já estava saindo, virou-se, olhou o médico nos
olhos e sentenciou: "não posso procurar o circo... aí está o
meu problema: eu sou o palhaço".
Como professor vejo que, às vezes, sou esse palhaço, alguém que
trabalhou para construir os outros e não vê resultado muito claro daquilo
que faz. Tenho a impressão que ensino no vazio (e sei que não estou só
nesse sentimento) porque depois de formados meus ex-alunos parecem que se
acostumam rapidamente com aquele mundo de iniqüidades que combatíamos
juntos. Parece que quando meus meninos(as) caem no mercado de trabalho
a única coisa que importa é quanto cada um vai lucrar, não importando quem
vai pagar essa conta e nem se alguém vai ser lesado nesse processo.
Aprenderam rindo, mas não querem passar o riso à frente e nem se comovem
com o choro alheio.
Digo isso, até em tom de desabafo, porque vejo que cada dia mais meus
alunos se gabam de desonestidades. Os que passam os outros para trás são
heróis e os que protestam são otários, idiotas ou excluídos, é uma total
inversão dos valores. Vejo que alguns professores partilham das mesmas
idéias e as defendem em sala de aula e na sala de professores e se
vangloriam disso. Essa idéia vem me assustando cada vez mais, desde que
repreendi, numa conversa com alunos, o comportamento do cantor Zeca
Pagodinho, no episódio da guerra das cervejas e quase todos disseram que o
cantor estava certo, tontos foram os que confiaram nele.
"O importante professor é que o cara embolsou milhões", disse-me um;
outro: "daqui a pouco ninguém lembra mais, no Brasil é assim, e ele vai
continuar sendo o Zeca, só que um pouco mais rico", todos se
entreolharam e riram, só eu, bobo que sou, fiquei sem graça.
O pior é quando a gente se dá conta que no Brasil é assim mesmo, o que vale
é a lei de Gérson:
"o importante é levar vantagem em tudo". ( Lei de Gerson...dá para rir...)
A pergunta é: É possível, pela lógica, que todo mundo ganhe ? Para alguém
ganhar é óbvio que alguém tem de perder.
A lógica é guardar o troco a mais recebido no caixa do supermercado; é
enrolar a aula fingindo que a matéria está sendo dada; é fingir que a
apostila está aberta na matéria dada, mas usá-la como apoio enquanto se
joga forca, batalha naval ou jogo da velha; é cortar a fila do cinema ou
da entrada do show; é dizer que leu o livro, quando ficou só no resumo
ou na conversa com quem leu; é marcar só o gabarito na prova em branco,
copiado do vizinho, alegando que fez as contas de cabeça; é comprar na feira
uma dúzia de quinze laranjas; é bater num carro parado e sair rápido antes que
alguém perceba; é brigar para baixar o preço mínimo das refeições nos
restaurantes universitários, para sobrar mais dinheiro para a cerveja da
tarde; é arrancar as páginas ou escrever nos livros das bibliotecas públicas;
é arrancar placas de trânsito e colocá-las de enfeite no quarto;
é trocar o voto por empregos, pares de sapato ou cestas básicas;
é fraudar propaganda política mostrando realizações que nunca foram feitas.
É a lógica da perpetuação da burrice. Quando um país perde, todo
mundo perde. E não adianta pensar que logo bateremos no fundo do poço,
porque o poço não tem fundo.
Parafraseando Schopenhauer: "Não há nada tão desgraçado na vida da gente
que ainda não possa ficar pior".
Se os desonestos brasileiros voassem, nós nunca veríamos o sol.
Felizmente há os descontentes, os lutadores, os sonhadores, os que
querem manter o sol aceso, brilhando e no alto.
A luz é e sempre foi a metáfora da inteligência. No entanto, de nada
adianta o conhecimento sem o caráter. Que nas escolas seja tão
importante ensinar Literatura, Matemática ou História
quanto decência, senso de coletividade, coleguismo e
respeito por si e pelos outros. Acho que o mundo (e, sobretudo, o
Brasil) precisa mais de gente honesta do que de literatos, historiadores
ou matemáticos. Ou o Brasil encontra e defende esses valores e
abomina Zecas, Gérsons, Dirceus, Dudas e todos os marketeiros que
chamam desonestidades flagrantes, de espertezas técnicas, ou o Brasil
passa de país do futuro para país do só furo.
De um Presidente da República espera-se mais do que choro e
condecoração a garis honestos, espera-se honestidade em forma de trabalho e
transparência.
De professores, espera-se mais que discurso de bons modos, espera-se que
mereçam o salário que ganham (pouco ou muito) agindo como quem é
honesto. A honestidade não precisa de propaganda, nem de homenagens,
precisa de exemplos. Quem plantar joio, jamais colherá trigo.
Quando reflexões assim são feitas cada um de nós se sente o palhaço
perdido no palco das ilusões. A gente se sente vendendo o que não pode
viver, não porque não mereça, mas porque não há ambiente para isso.
Quando seria de se esperar uma vaia coletiva pelo tombo, pelo golpe dado na
decência, na coerência, na credibilidade, no senso de respeito, vemos
a população em coro delirante gritando "bis" e, como todos sabemos, um
bis não se despreza. Então, uma pirueta, duas piruetas, bravo ! bravo ! E
vamos todos rindo e afinando o coro do "se eu livrar a minha cara o
resto que se dane". Enquanto isso o Brasil de irmã Dulce, de Manuel
Bandeira, do Betinho, de Clarice Lispector, de Chiquinha Gonzaga e de
muitos outros heróis anônimos que diminuíram a dor desse país com a sua
obra, levanta-se, caminha em silêncio até a porta, vira-se e diz: "Esse é
o problema... eu sou o palhaço".

*Professor de literatura das Faculdades Nobel no estado do Paraná


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