segunda-feira, setembro 27, 2004

 

Preconceito racial e mobilidade social


Muito se tem falado, ultimamente, a respeito da questão das cotas para negros nas universidades brasileiras. Eu mesmo já falei disso aqui em diversas ocasiões. Não vejo com bons olhos a questão das cotas, mesmo porquê na minha opinião servem apenas para reforçar um preconceito que já existe. A questão do acesso aos negros à Universidade passa, antes, pela falta de qualidade do ensino médio e fundamental oferecido pelas escolas públicas, onde estuda a grande maioria da população de baixa renda ( e onde se encontram a grande maioria dos negros e mestiços da população). Passa também pela condição em que o negro está "inserido" na sociedade, como veremos adiante. Antes que comecem a me jogar as habituais pedras, esclareço novamente que sou professor em Belo Horizonte, e dou aulas como voluntário em um pré-vestibular comunitário chamado Educafro (Educação e Cidadania de Afrodescendentes), voltado para alunos negros e carentes. Então, estou mais do que diretamente envolvido na questão, seja por questões de raça ou profissionais.

Um trabalho de Rafael Guerreiro Osório, do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), abordando a formação da estrutura socioeconômica brasileira, traz informações interessantes ao debate. Através do trabalho, podemos perceber as relações existentes entre mobilidade social, educação e desenvolvimento econômico, e a situação dos negros na sociedade brasileira. Osório parte de uma tese bastante debatida hoje em dia, a de que o preconceito de classes seria maior do que o preconceito racial no Brasil. Eu mesmo já cheguei a acreditar nisso, mas me rendi às evidências empíricas, que provam o contrário. Para corroborar tal hipótese muito contribuiu Gilberto Freire com seu livro Casa Grande & Senzala, onde os relatos sobre a permissividade e a miscigenação física e cultural criaram um clima ilusório, de ausência de barreiras raciais.
Mais de um século depois da abominada escravidão, e o que vemos é que a mobilidade social entre negros e mulatos (ou mestiços) é praticamente inexistente, fato que por si já chama a atenção. O Brasil que se diz sem preconceitos raciais, é o mesmo Brasil que pede "boa aparência" nos classificados de jornal. O desenvolvimento econômico do Brasil-escravocrata para o Brasil de hoje teria dado condições de melhoria do status econômico e social à todos os brasileiros, mas o que observamos hoje não condiz com tal hipótese. Nem o intenso crescimento econômico registrado pelo país até a década de 80, ou o intenso processo de urbanização, resultaram em mobilidade social. Sair da roça, onde trabalhava na enxada, e vir para a cidade trabalhar como servente ou pedreiro não pode ser visto como um processo de mobilidade social. Nos dizeres de Costa Pinto, o único tipo de ascensão social experimentado pelos negros foi de escravo à proletário, sem alcançar ainda o status de cidadão.

Uma simples análise dos números da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) é suficiente para jogar por terra o mito da "democracia racial": os negros estão mais presentes nos estratos sociais inferiores, seja em educação, renda ou ramo de atividade. Números do IBGE mostram ainda que, somados ao preconceito, os negros enfrentam condições adversas também no que se refere à educação. Segundo o IBGE, os trabalhadores brancos tem mais tempo de estudo (9,8 anos contra 7,7), e mesmo entre os desempregados, ainda levam vantagem (têm cerca de 9,5 anos de estudo contra 8,0 anos dos negros). Logicamente, para os negros o funil é ainda bem mais estreito.

Voltando à questão das cotas, ainda que eu particularmente não concorde com essa metodologia, fica claro que algo necessita ser feito. Ainda que não seja o melhor caminho, o simples fato de estarmos debatendo a questão e procurando alternativas é enriquecedor. Por vias tortas, acabaremos chegando ao cerne da questão. Ações afirmativas são válidas. Mas, mais do que isso, os negros necessitam de políticas afirmativas.

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