quinta-feira, outubro 21, 2004

 

Fragmentos de um passado recente


Os que me conhecem já sabem: sou meio "brega", ou seja lá o que for que essa palavra quer dizer. Estava pensando nisso agora mesmo, ouvindo "Detalhes", do Roberto Carlos. Meu gosto musical é bem variado, e acabo ouvindo de tudo um pouco, gostando de tudo um pouco. Ou quase tudo. Tem coisa que não dá pra escutar. Me perdoem, mas funk, axé e coisas do gênero não dá. Não cheguei nesse nível ainda. Mas adoro Roberto Carlos e Eduardo Dusek, por exemplo. Um porque me lembra bons momentos da minha infância/adolescência. Outro porque me lembra alguém de quem gosto muito. Minha praia mesmo é MPB, Rock, e aí escuto de tudo.
Mas afinal, música é isso. É muito mais que simples ondas sonoras. São emoções, sensações, lembranças, saudades que chegam até a gente em forma de som. Pra mim, música tem cheiro, cor e forma.

Além de "brega", sou meio careta (sem ser maniqueísta): sei que ninguém é inteiramente bom ou mal, que ninguem mente ou fala a verdade todo o tempo, enfim, que não existe perfeição nesse mundo. Sei que nem sempre bandido é bandido e polícia é polícia, e que frequentemente os dois lados se confundem, se misturam. Mesmo sabendo disso tudo, tenho uma tendência (ou um defeito, como queiram) de sempre tentar distinguir o certo do errado, por achar que existe realmente o certo e o errado, e não gostar de ficar "relativizando" tudo, como é moda por aí. Tenho colegas que dizem que às vezes eu assumo o discurso da classe média. Espero que saibam o que estão dizendo, porque eu não sei. Além disso, tenho uma tolerância muito baixa em relação às barbaridades nossas de todo dia. Sei, vivemos num país de profundas desigualdades sociais, onde falta ao cidadão direitos básicos como educação, moradia, saúde e emprego. Mas parto sempre da premissa contrária ao ditado francês que diz que "tudo compreender é tudo perdoar"; vivo dizendo que isso não justifica a violência, os assaltos nos ônibus, as balas perdidas, enfim, a bandidagem que age impunemente por aí. Isso vale desde o batedor de carteiras ao terrorista, de Bin Laden a Bush.

Nada disso justifica tais coisas. Não esperem de mim achar que são todos "coitados", vítimas do sistema. Vivem sem respeito à vida humana, inclusive a deles, baseados em valores morais ou éticos criados pelo seu cérebro marginal. Tem gente que acha que ser pobre lhes dá o direito de fazer o que der na telha. Moro perto de uma favela (ou vila, como queiram) e o que vejo são ônibus lotados de manhã e de tarde, com pessoas que vão e vem dos seus trabalhos (verdade que ultimamente, o desemprego é tão grande que até os ônibus estão menos cheios), que tentam ganhar a vida honestamente.

Como último argumento, ainda que a vida seja uma porcaria, que você não tenha onde cair morto, desempregado, faminto... Sempre se pode dizer não. O soldado convocado para a guerra, para matar, tem a opção de dizer "não". Os soldados nazistas tinham a opção de dizer "não" aos seus superiores. Pilatos, se existiu realmente, teve a opção de dizer o seu "não", e não o fez. Quem jogou a bomba atômica em Hiroshima e Nagazaki podia ter dito não. Nós sempre temos uma escolha, e somos os únicos responsáveis pela consequência de nossos atos. Por a culpa em Deus, no sistema, na classe média, no "governo" ou em qualquer outra coisa é muito mais fácil do que assumir que a decisão, no final, é sempre nossa.
Viktor Frankl, um judeu aprisionado pelos nazistas em um campo de concentração, fez a seguinte observação: "Entre o estímulo e a resposta, o homem possui a liberdade de escolha". É isso. Cada um que fique com a sua.

Devemos ter cuidado com a hipocrisia. Certo dia ouvi de alguém, na faculdade, dizer que "dava mais valor àqueles que não tinham estudo nenhum". Claro, eu sei que todos têm o seu valor, independente de credo, raça, e frequentar ou não a universidade não quer dizer quase nada. A sabedoria popular não tem preço. Engraçado foi ouvir ele dizer isso, e não dizer "vou largar minha faculdade e me juntar a eles", ou "porque não trazer eles para a faculdade, para somar à sabedoria que já possuem"? Fazer a revolução de carrão importado, conta especial e falando inglês é mais chique e mais confortável, não?...
Da mesma maneira, falar mal da classe média, da Globo, do governo, ou de quem quer que seja é fácil. Difícil é abrir mão do conforto pequeno-burguês de todo dia, olhar o outro verdadeiramente e dizer: "o que posso fazer pra ajudar, pra mudar as coisas?"... e aí começa a parte mais difícil: fazer.

Falando em fazer, Eduardo Alves tem um poema belíssimo, que muito pouca gente sabe verdadeiramente ser ele o autor, e cujos "fragmentos" mais conhecidos, reproduzo abaixo:

NO CAMINHO COM MAIAKÓVSKI (fragmentos)
EDUARDO ALVES DA COSTA

Tu sabes,
conheces melhor do que eu
a velha história.
Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na Segunda noite, já não se escondem:
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz, e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.


* * *

Aliás, estes versos lembram muito os "fragmentos de um outro poema, de Martin Niemoller:

Primeiro eles levaram os comunistas, e eu não falei nada,
porque eu não era um comunista.
Então eles levaram meu vizinho que era judeu, e eu não falei nada,
porque eu não era um judeu.
Então eles levaram os católicos, e eu não falei nada,
porque eu era Protestante.
Então eles vieram e me levaram;
já não havia mais ninguém para reclamar.


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